amores expresos, blog do Amilcar

quarta-feira, 27 de junho de 2007

Armas

Aí pelas duas da manhã, eu estava bebericando tranqüilamente a saideira numa mesa na calçada de uma das transversais da Istiklal (uma avenida pedestre que é o coração pulsante da Istambul boêmia — e não só, pois durante o dia ela também não perde o seu estatuto de núcleo irradiador, com muitas lojas, cafés, etc : a principal artéria do que seria a parte « nova » da cidade ; o « nova » aqui é como alguns (na maior parte estrangeiros, creio) a designam apenas para fazer a distinção da porção de terra que fica o sul do Haliç, que vai até o mar de Marmara, e onde se concentram os principais monumentos históricos).

Pois eu estava lá, numa das muitas das suas transversais sempre lotadas de mesas na calçada e gente circulando até altas horas. O clima ajuda, as noites são até agradáveis e frescas se compararmos com o calor abrasador durante o dia (após a primeira semana, quando a temperatura se manteve em patamares civilizados, a coisa descambou completamente, e aí pelas três da tarde se chega aos 40° facinho, facinho (tenho um termômetro ligado ao exterior do apartamento que registra belos índices) ; dei sorte, segundo as estatísticas é o junho mais quente dos últimos trinta anos em Istambul !). A disposição dos turcos para sair também ajuda. A cerveja rola solta, não se vê uma só mulher de véu na cabeça, afinal estamos no Ocidente.



Pois eu estava ali, consumindo umazinha antes de voltar para casa quando, de repente, ouvi tiros.

Sim, ouvi tiros, disparos, balaços, como quiserem. No meio daquele vaivém infernal de gente havia um cara disparando um revólver em não sei quem nem por quê.

Algumas (não muitas) pessoas se levantaram, houve um tímido começo de tumulto. Uma mulher gritando cruzou a rua a uns trinta metros de onde eu estava. Algumas pessoas vinham junto com ela. Em seguida mais tiros, e eu ainda pude ver o cara com o revólver apontado para o alto, mandando bala. Seguiram para o lado oposto onde eu estava.

Passado o susto, todo mundo continuou se dedicando a esse esporte universal que relaxa a mente e o corpo e sem o qual seria difícil suportar as dores do mundo.

Uns largos trinta minutos depois apareceu a polícia, fazendo um escarcéu digno, com sirenes esgoeladas, armas na mão, etc.

Passaram, não sei como terminou a coisa. Só sei que terminei a minha cerveja e fui dormir. Creio que os outros fizeram a mesma coisa. Na verdade, o incidente não alterou grande coisa no quadro de uma tranqüilidade etílico-notívaga instalada por ali.

Só no outro dia é que fui fazer a relação com algo que eu já tinha visto a alguns dias atrás e que havia me deixado espantado : numa passagem subterrânea, sob a estação de Karaköy do tramway, por onde circula um número enorme de pessoas por dia (Istambul tento cerca de 15 milhões de habitantes , podemos esperar que — um chute — no mínimo um décimo disto passe diariamente por essa estação que é uma das mais centrais da cidade), existem lojinhas, uma ao lado da outra, como em qualquer galeria ou passagem subterrânea das grandes cidades do Brasil, lojinhas que vendem pilhas, despertadores, calculadoras, rádios, fitas cassetes, CDs e… pistolas.

Pois é. Pistolas. Revólveres. Armas. Estão lá, muitas, bem expostas sob o vidro do balcãozinho ou penduradas na parede, ao lado das pilhas, despertadores, calculadoras, etc. O pessoal chega, aponta para uma na parede, « quero aquela ali », experimenta, verifica se ela se adapta bem ao tamanho da mão, avalia seu peso, e leva. Assim, como se levasse um pacote de pilhas para o brinquedinho do seu filho.



De alguma forma estava explicado para mim o incidente da outra noite numa zona tão central de Istambul. Evidentemente, se era tão fácil comprar uma arma, incidentes como aquele (e até mais graves) deveriam ser corriqueiros por aqui.

Aí o Tadeu chegou.

É, o Tadeu Jungle, que veio fazer umas imagens para o documentário sobre o projeto. Andamos um pouco por todo o canto e, claro, levei ele à galeria onde se podia comprar uma pistola como quem compra banana na feira.

Também ele se mostrou surpreso, claro, mas logo em seguida fez uma observação que eu ainda não tinha formulado, embora ela tivesse ficado no ar, traduzida por « alguma coisa estranha » que eu via naquelas armas.

A observação do Tadeu : « Mas será de verdade mesmo ? »

Eu não conheço nada de armas, acho que nunca peguei num revólver na minha vida, e os únicos tiros que dei foram com espingardas de pressão, ainda na infância. Mas de fato, havia alguma coisa ali, além da exposição descarada das armas, que as tornava inverossímeis. Resolvemos perguntar. E o Tadeu teve a confirmação daquilo que talvez ele já soubesse desde o início mas que, por delicadeza, não teria sido enfático e fechado a questão antes : as armas não eram de verdade, apesar da incrível semelhança com armas de verdade, tanto na forma, tamanho, quanto no tipo de material, e disparavam tiros de espoleta.

Imediatamente pensei nos tiros da outra noite. Sim, deveriam ter sido de espoleta também. Isso explicaria a aparente calma das pessoas à minha volta, o que antes eu havia creditado a um certo torpor etílico das duas da manhã.

Mas ainda assim permanecia inexplicado — e mesmo o vendedor não soube dizer claramente, acho que menos em função do seu inglês trôpego do que pela real falta de explicação lógica — o motivo pelo qual as pessoas compram esses « brinquedos ». Não são crianças que os compram (eu já havia presenciado várias pessoas, homens todos, experimentarem e levarem as « pistolas »). Coleção ? Diversão ? Uma forma de sublimar o instinto de violência ?

Halil, uma entre algumas pessoas que acabei conhecendo aqui por meio de uma cascata de indicações de amigos de amigos de amigos de amigos de amigos que são de, ou que moraram em Istambul, me disse que não foram poucas as vezes em que acidentes fatais ocorreram quando uma dessas armas de brinquedo encontrou outra de verdade. Halil também não soube explicar o porquê de as pessoas comprarem essas « armas » ; disse que parece que algumas as usam para « se protegerem » em discussões no trânsito, por exemplo, ou mesmo de assaltos. Mas não soube explicar exatamente, terminando por fazer a constatação de que « os turcos gostam de armas, gostam de portar uma arma, especialmente os jovens, mesmo que seja de brinquedo ».

Não é uma generalização, apenas uma tentativa de explicar algo que, para quem não está acostumado, à primeira vista parece inexplicável.

Porém, e novamente sem querer generalizar, atitudes ligadas à demonstração de virilidade ou agressividade estão presentes em todo o lado, desde os hooligans de todos os países até a maneira de dirigir um automóvel, passando pela escolha dos modelos mais possantes, as academias de inchação de músculos, os pitbulls (humanos e caninos), etc, etc, etc.

Enfim, a lista seria numerosa, o homem, porém, é um só, em qualquer lugar do mundo.

1 Comentários:

Blogger Non je ne regrette rien: Ediney Santana disse...

maravilhosas fotos

17 de julho de 2009 às 19:49  

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