amores expresos, blog do Amilcar

sexta-feira, 29 de junho de 2007

Algumas fotos


Varal



Perfis


Contraluz 1


Contraluz 2


Dervixes



Auto-retrato

Um vídeo





E a minha despedida. Fui.

Um abraço do

Amilcar

quarta-feira, 27 de junho de 2007

Armas

Aí pelas duas da manhã, eu estava bebericando tranqüilamente a saideira numa mesa na calçada de uma das transversais da Istiklal (uma avenida pedestre que é o coração pulsante da Istambul boêmia — e não só, pois durante o dia ela também não perde o seu estatuto de núcleo irradiador, com muitas lojas, cafés, etc : a principal artéria do que seria a parte « nova » da cidade ; o « nova » aqui é como alguns (na maior parte estrangeiros, creio) a designam apenas para fazer a distinção da porção de terra que fica o sul do Haliç, que vai até o mar de Marmara, e onde se concentram os principais monumentos históricos).

Pois eu estava lá, numa das muitas das suas transversais sempre lotadas de mesas na calçada e gente circulando até altas horas. O clima ajuda, as noites são até agradáveis e frescas se compararmos com o calor abrasador durante o dia (após a primeira semana, quando a temperatura se manteve em patamares civilizados, a coisa descambou completamente, e aí pelas três da tarde se chega aos 40° facinho, facinho (tenho um termômetro ligado ao exterior do apartamento que registra belos índices) ; dei sorte, segundo as estatísticas é o junho mais quente dos últimos trinta anos em Istambul !). A disposição dos turcos para sair também ajuda. A cerveja rola solta, não se vê uma só mulher de véu na cabeça, afinal estamos no Ocidente.



Pois eu estava ali, consumindo umazinha antes de voltar para casa quando, de repente, ouvi tiros.

Sim, ouvi tiros, disparos, balaços, como quiserem. No meio daquele vaivém infernal de gente havia um cara disparando um revólver em não sei quem nem por quê.

Algumas (não muitas) pessoas se levantaram, houve um tímido começo de tumulto. Uma mulher gritando cruzou a rua a uns trinta metros de onde eu estava. Algumas pessoas vinham junto com ela. Em seguida mais tiros, e eu ainda pude ver o cara com o revólver apontado para o alto, mandando bala. Seguiram para o lado oposto onde eu estava.

Passado o susto, todo mundo continuou se dedicando a esse esporte universal que relaxa a mente e o corpo e sem o qual seria difícil suportar as dores do mundo.

Uns largos trinta minutos depois apareceu a polícia, fazendo um escarcéu digno, com sirenes esgoeladas, armas na mão, etc.

Passaram, não sei como terminou a coisa. Só sei que terminei a minha cerveja e fui dormir. Creio que os outros fizeram a mesma coisa. Na verdade, o incidente não alterou grande coisa no quadro de uma tranqüilidade etílico-notívaga instalada por ali.

Só no outro dia é que fui fazer a relação com algo que eu já tinha visto a alguns dias atrás e que havia me deixado espantado : numa passagem subterrânea, sob a estação de Karaköy do tramway, por onde circula um número enorme de pessoas por dia (Istambul tento cerca de 15 milhões de habitantes , podemos esperar que — um chute — no mínimo um décimo disto passe diariamente por essa estação que é uma das mais centrais da cidade), existem lojinhas, uma ao lado da outra, como em qualquer galeria ou passagem subterrânea das grandes cidades do Brasil, lojinhas que vendem pilhas, despertadores, calculadoras, rádios, fitas cassetes, CDs e… pistolas.

Pois é. Pistolas. Revólveres. Armas. Estão lá, muitas, bem expostas sob o vidro do balcãozinho ou penduradas na parede, ao lado das pilhas, despertadores, calculadoras, etc. O pessoal chega, aponta para uma na parede, « quero aquela ali », experimenta, verifica se ela se adapta bem ao tamanho da mão, avalia seu peso, e leva. Assim, como se levasse um pacote de pilhas para o brinquedinho do seu filho.



De alguma forma estava explicado para mim o incidente da outra noite numa zona tão central de Istambul. Evidentemente, se era tão fácil comprar uma arma, incidentes como aquele (e até mais graves) deveriam ser corriqueiros por aqui.

Aí o Tadeu chegou.

É, o Tadeu Jungle, que veio fazer umas imagens para o documentário sobre o projeto. Andamos um pouco por todo o canto e, claro, levei ele à galeria onde se podia comprar uma pistola como quem compra banana na feira.

Também ele se mostrou surpreso, claro, mas logo em seguida fez uma observação que eu ainda não tinha formulado, embora ela tivesse ficado no ar, traduzida por « alguma coisa estranha » que eu via naquelas armas.

A observação do Tadeu : « Mas será de verdade mesmo ? »

Eu não conheço nada de armas, acho que nunca peguei num revólver na minha vida, e os únicos tiros que dei foram com espingardas de pressão, ainda na infância. Mas de fato, havia alguma coisa ali, além da exposição descarada das armas, que as tornava inverossímeis. Resolvemos perguntar. E o Tadeu teve a confirmação daquilo que talvez ele já soubesse desde o início mas que, por delicadeza, não teria sido enfático e fechado a questão antes : as armas não eram de verdade, apesar da incrível semelhança com armas de verdade, tanto na forma, tamanho, quanto no tipo de material, e disparavam tiros de espoleta.

Imediatamente pensei nos tiros da outra noite. Sim, deveriam ter sido de espoleta também. Isso explicaria a aparente calma das pessoas à minha volta, o que antes eu havia creditado a um certo torpor etílico das duas da manhã.

Mas ainda assim permanecia inexplicado — e mesmo o vendedor não soube dizer claramente, acho que menos em função do seu inglês trôpego do que pela real falta de explicação lógica — o motivo pelo qual as pessoas compram esses « brinquedos ». Não são crianças que os compram (eu já havia presenciado várias pessoas, homens todos, experimentarem e levarem as « pistolas »). Coleção ? Diversão ? Uma forma de sublimar o instinto de violência ?

Halil, uma entre algumas pessoas que acabei conhecendo aqui por meio de uma cascata de indicações de amigos de amigos de amigos de amigos de amigos que são de, ou que moraram em Istambul, me disse que não foram poucas as vezes em que acidentes fatais ocorreram quando uma dessas armas de brinquedo encontrou outra de verdade. Halil também não soube explicar o porquê de as pessoas comprarem essas « armas » ; disse que parece que algumas as usam para « se protegerem » em discussões no trânsito, por exemplo, ou mesmo de assaltos. Mas não soube explicar exatamente, terminando por fazer a constatação de que « os turcos gostam de armas, gostam de portar uma arma, especialmente os jovens, mesmo que seja de brinquedo ».

Não é uma generalização, apenas uma tentativa de explicar algo que, para quem não está acostumado, à primeira vista parece inexplicável.

Porém, e novamente sem querer generalizar, atitudes ligadas à demonstração de virilidade ou agressividade estão presentes em todo o lado, desde os hooligans de todos os países até a maneira de dirigir um automóvel, passando pela escolha dos modelos mais possantes, as academias de inchação de músculos, os pitbulls (humanos e caninos), etc, etc, etc.

Enfim, a lista seria numerosa, o homem, porém, é um só, em qualquer lugar do mundo.

sexta-feira, 22 de junho de 2007

OLHANDO AS ÁGUAS ROLAREM ou QUANDO BATE AQUELA FOME NEGRA NA MADRUGA ou ainda NEM TODO BOTECO QUE É BOTECO TEM CERVEJA, PELO MENOS NÃO EM ISTAMBUL

quinta-feira, 21 de junho de 2007

A cidade, ainda



Tento escutar a cidade, tento ouvir sua voz, seu lamento, seu grito, seu sussurro, tento descobrir o que ela tem a me dizer. Ando muito, olho, agarro-me aos detalhes. O que apreender ? O que vai ficar ? Daqui a alguns anos vou dizer « quando estive em Istambul em 2007… » , e o que virá à minha mente ? Que imagem ? O que será Istambul para mim ?

Como de um livro, como de um filme, impossível guardar palavra por palavra, cena por cena. O que fica é sempre uma síntese, uma idéia, uma sensação — um resumo, se quiserem. Leio Istambul, assisto Istambul, e o que leio e vejo de alguma forma já estavam escritos em mim. Não é preciso dizer que uma idéia, uma sensação, um resumo, uma leitura serão sempre particulares e muito pessoais. Mas digo : uma leitura será sempre particular e muito pessoal. Sem muito pôr a culpa na minha memória já combalida pelos anos e a vagabundagem mental a qual me entrego com freqüência e imenso prazer, não são raros os livros que li dos quais não me lembro rigorosamente de nada. De outros a lembrança é tão vaga e quase sempre tão distante do que diz deles a luminosa orelha lavrada por algum ilustre escritor ou pelo próprio autor temeroso da incompreensão do mundo e disfarçado de « os editores ».

Mas sempre o que fica é o que fui capaz de encontrar ali, o que estava, de certa forma, reservado para mim.



A Istambul que leio me reserva coisas que talvez eu não encontrasse em outros lugares, mas que talvez outros viajantes tampouco encontrariam aqui, em Istambul.

O que quero dizer é que de um encontro são no mínimo duas partes que participam. Você não vai encontrar alguém ou alguma cidade. Vocês vão se encontrar, e nisso está implícito o que cada um pode (ou quer) e vai descobrir no outro.

Assim como a um livro se chega com sua carga de experiência pessoal, sensibilidade e centros de interesse, também em uma cidade há uma contribuição do viajante ao que ela vai lhe oferecer. A construção da imagem da cidade é um misto de passividade e atividade. Sem a disposição para a abertura, sem a vontade de receber, não acontece o encontro. E ao mesmo tempo, ninguém é isento de nada, muito menos da sua vivência, isto que lhe serve de base para toda leitura e a partir do que é possível ter acesso a uma coisa nova.

Em relação às cidades, trago uma inscrita em mim e de certa maneira será sempre a partir dela que lerei as outras que vou encontrando pelo caminho. Em Porto Alegre vivi mais de vinte anos, os anos de juventude, e isso a faz, quer eu queira ou não, a cidade que trago em mim. Será sempre a minha referência. Não que seja um permanente elemento de comparação, mas um suporte sobre o qual uma outra cidade pode se assentar e tornar-se visível para mim.

Quando escrevi « Os lados do círculo » eu pretendia que Porto Alegre fosse uma espécie de personagem que desse coesão ao livro, o elemento aglutinador dos contos. Ela está presente do início ao fim, com suas ruas, seus bairros, suas cores, seu sotaque. Foi vivendo Porto Alegre em cada minuto dos quatro ou cinco anos que levei para escrever o livro, foi tendo-a o tempo todo como meu norte que, enfim, escrevi o que para mim seria uma declaração de amor a essa cidade. Porém, coisa curiosa, vários porto-alegrenses que leram o livro vieram me dizer que não reconheciam ali a cidade deles.

Na verdade, sempre que desejarmos escutar o que uma cidade tem a nos dizer, sempre que decidirmos vê-la com nossos próprios olhos — o que não é tarefa fácil, pois as lentes pré-fabricadas são muitas e bastante confortáveis —, é muito provável que o que nos seja revelado dificilmente venha a ser percebido da mesma forma por uma outra pessoa. E a transmissão dessa leitura, ou imagem, ou impressão, ou qualquer outro nome que se queira dar, só será válida quando ela for recebida não como uma maneira de « saber um pouco mais » a respeito dessa cidade, mas como uma versão dela.


Se até aqui, nesse blog, as informações objetivas sobre Istambul são raras é porque julgo-as inúteis.

Mesmo descrevendo Istambul, não sei se eu estaria contribuindo para que vocês conhecessem a cidade. Agora por exemplo, no momento em que escrevo, às cinco e meia da manhã, assisto da minha janela (aliás, tenho uma bela vista desde minhas amplas janelas) uma revoada de gaivotas sobre o Haliç, esse braço de água que divide a parte européia da cidade em outras duas partes e que em português pode ser chamado — mesmo sem o poder de convencimento que em francês tem la Corne d’Or — de Chifre de Ouro. O céu está denso agora, às cinco e meia da manhã em Istambul, há uma bruma não muito espessa, mistura de nevoeiro com poluição, que pela refração da luz do sol se levantando no Bósforo (que vejo também, de um outra janela) ajuda a dar essa cor avermelhada às casas dispostas sobre as colinas que se erguem do outro lado do Haliç.

Uma imagem, uma cena de Istambul, desde a janela do meu apartamento. Mas e depois ? Teria que descrever outra cena, de um outro ângulo. E várias outras, indefinidamente. Mas e depois ? Impossível lembrar cena por cena, impossível recontar cena por cena.




Desde que cheguei mantenho um diário onde anoto religiosamente, com um senso do dever digno de um aluno cdf (que fui, aliás), todos os meus passos em Istambul. Meu objetivo é que eles sirvam de apoio à memória, que sirvam quem sabe para despertar algumas associações durante o espanto de uma leitura afastada no tempo. Da mesma forma já visitei as principais mesquitas e monumentos históricos, do contrário meus amigos franceses não compreenderiam nada na minha volta. São os campeões absolutos na modalidade turismo cultural. Prolíficos produtores de guias de viagem, dedicados visitantes de museus, igrejas, mesquitas, sinagogas, monumentos que eles vão, com uma abnegação comovente, ticando um a um na margem esquerda das páginas do seu guia. Antes de sair de casa, eles lêem sobre a história do país a visitar, a política, aprendem algumas palavras no idioma local, são capazes de falar sobre a culinária do país e citar alguns pratos típicos que vão, invariavelmente, buscar nos menus dos restaurantes indicados pelo Routard, Michelin ou pelo Guide Gallimard, já que o poder aquisitivo pode ser diferente mas o cartesianismo permanece inalterado. Não, eles não compreenderiam se eu dissesse que fiquei trinta dias em Istambul sem fazer nenhum dos circuitos que se « tem » que fazer em Istambul, apenas escutando-a, percorrendo-a.

Aliás, muita gente não compreenderia.




Infelizmente (ou felizmente) quem quiser conhecer Istambul vai ter que vir aqui. Se quiser encontrar o que acha que deve encontrar em Istambul ou confirmar a idéia que tem da cidade, compre um guia, qualquer um serve — os franceses, por exemplo, são ótimos.

Não tenho nenhuma informação para passar, o máximo que posso fazer é levar ao paciente leitor desse blog algumas reflexões sobre o tipo de encontro com uma cidade que um projeto como esse do Amores Expressos possibilita.

Mas como toda paciência tem limite, e como ao invés da cidade já começo a ouvir suspiros, tossezinhas e ruídos de movimentos em busca de uma melhor posição na cadeira, termino aqui este post.

Com a esperança de que ele não tenha ajudado ninguém a saber um pouco mais sobre Istambul.


quarta-feira, 13 de junho de 2007

Nas ruas da cidade











As casas incendiadas de Istambul

No lindo livro de memórias entremeadas com reflexões sobre a sua Istambul natal, intitulado justamente Istambul — memória e cidade, o escritor Orhan Pamuk se refere com uma insistência quase obsessiva aos incêndios que aconteciam em Istambul na época de sua juventude, mas que pode ser um pouco antes também, nos anos 50, ou ainda mais, no século XIX e em todo o período otomano. Ou seja, Istambul sempre foi varrida por incêndios, como se eles fossem tão inquestionáveis quanto um acidente geográfico como o Bósforo ou as suas sete colinas, sem o que Istambul não seria Istambul.

Não fica muito claro no livro, pelo menos para mim não ficou, como e por que ocorriam esses incêndios, em que pese as referências às colisões de navios no estreito do Bósforo e às explosões que as sucediam, lançando chamas e estilhaços de ferro incandescente nas yalıs perfiladas junto à margem — essas casas de madeira cujas fachadas retas de dois, três andares abriam suas janelas e sacadas elegantes diretamente sobre o Bósforo, e que em meados do século XIX já serviam de refúgio para paxás um tanto acuados pela leva de imigrantes que chegava à cidade e desencantados diante da decrepitude do império que começava a emitir os seus últimos suspiros.

Bairros inteiros eram devastados, para o êxtase carregado de culpa de todos os habitantes de Istambul — dos paxás otomanos de outros tempos ao próprio Pamuk e seus amigos de juventude — que viam tais incêndios como um espetáculo feérico que servia de pretexto para reunir-se com os amigos e conversar sobre os mais variados assuntos enquanto o fogo iluminava o céu das madrugadas escuras do Bósforo.

Mas um simples passeio pelos bairros mais pobres e decadentes de Istambul em junho de 2007 vai mostrar ao viajante, leitor de Pamuk, que não apenas do Bósforo vinham os incêndios — embora « todo mundo que vive em Istambul saiba que uma calamidade, quando chega, chega do Bósforo ». Restos de incêndio, destroços de madeira carbonizada, fachadas devastadas pelo fogo, as marcas de uma catástrofe que, ainda segundo Pamuk, muitos moradores de Istambul viam como algo impossível de ser evitado, estão por todos os lados, especialmente nesses bairros populares onde a confusão do traçado das ruas cria uma profusão de becos e ruelas que aproximam uma construção da outra, amontoando-as umas sobre as outras, fazendo com que a fagulha de um fósforo acendido numa cozinha possa cair sobre a colcha da cama da casa em frente.

Caminhar pelas ruas de Balat ou Fener, por exemplo, mas também em Dolapdere ou em alguns becos perdidos da descolada Beyoğlu, a vitrine ocidental de Istambul, vai revelar isso que para mim já materializa uma das características mais tocantes dessa cidade : uma decadência — ok, Pamuk — melancólica, mas, mais do que isso, uma decadência que introduz um caráter de espectro na personalidade da cidade.

Dá uma cara para a morte. Morte que pode ser a do passado imperial ou a de uma cultura que no esforço de uma ocidentalização a toque de caixa teria sido substituído por coisa nenhuma (reparem no tom duvidoso dessa passiva). Mas de qualquer maneira a decadência aqui tem claramente uma cara, um rosto, isto que se materializa nas ruínas de uma casa incendiada de Balat, Fener, Draman, Ayvansaray ou qualquer outro lugar de Istambul, seja ele popular ou não, porque, em maior ou menor quantidade, elas estão por todos os seus bairros.

Algumas dessas casas exalam ainda o cheiro da madeira queimada pelo fogo que consumiu seus intestinos a não sei quantos anos atrás, muitas vezes deixando apenas as paredes externas de pé, onde uma fachada invariavelmente enegrecida exibe janelas que são olhos e bocas escuras, gargantas carbonizadas onde restos de mobília repousam petrificados numa espécie de radiografia da morte.

Muitas dessas casas são rostos cansados, rostos de fantasmas que observam o viajante e oferecem-lhe sua tristeza, certo, mas também certa altivez que só a decrepitude consciente e resignada pode conferir.

Não há como deixar de ser solidário a essas construções caindo aos pedaços. Não há como o viajante não se sentir atraído por essas ruínas que parecem lhe falar à sua passagem.

Um pouco em função disso, e se me imagino não num mês de junho de muito sol e temperaturas agradabilíssimas, mas num dezembro de nevoeiro espesso sobre o Bósforo, fica fácil entender a Istambul melancólica de Pamuk, corroída pela hüzün, palavra turca que designa uma disposição sombria coletiva, e incorporando a decadência à sua paisagem num quadro em preto e branco que enternece e exalta aquele que o vê, como sempre acontece nesses casos, através do filtro do tempo e da história.

Mas ao mesmo tempo, pelo menos em junho, Istambul é também muito solar, viva e colorida. E eu não poderia terminar esse texto sem ao menos mencionar a paisagem humana da cidade, que lhe sopra nas veias, e pulsa, construindo um belo contraponto ao estado de abandono presente em toda Istambul e que se materializa nas ruínas de suas casas incendiadas.

terça-feira, 5 de junho de 2007

A arte de chegar em uma cidade

Um dia escrevi um texto, que ainda não publiquei mas que sem dúvida o farei qualquer outro dia desses, intitulado “A arte de chegar numa cidade”. Era, é, um texto um tanto impressionista que falava, entre outras coisas, dos primeiros movimentos de alguém que chega em uma cidade desconhecida; não suas primeiras impressões, mas os primeiros gestos, as primeiras atitudes em relação a essa cidade, já que a impressão vai nascer justamente desses primeiros movimentos de aproximação à cidade já dentro do seu espaço físico.

Uma aproximação concreta, portanto, sensorial, e não mais restrita ao domínio do ideal que serve de base à preparação ­­— quando há — de uma viagem (compra de guias, leituras, mapas, passagens, alojamento, enfim, tudo isso que ajuda a assentar a idéia da viagem e criar algumas expectativas, fantasias, imagens, projeções, o desejo de partir, enfim, tudo isso que será — pelo menos é aconselhável que seja — posto por terra a partir do momento em que o viajante começa a se movimentar na cidade que o acolhe).

A distância que há, por exemplo, entre olhar a fotografia (e se se trata de um guia de viagem, essa fotografia será sempre uma variação de outras tantas que já vimos) de uma paisagem ou prédio ou monumento da cidade e vê-lo pela primeira vez na cidade é simplesmente enorme. Não que a imagem direta, sem a mediação e o recorte do fotógrafo que a arranca da cidade e a entrega ao nosso imaginário para que ele faça o que quiser com ela, seja mais bonita ou decepcionante; nem mesmo mais verdadeira; não é disso que se trata. Falo da experiência de vivenciar algo que, de uma ou outra forma, já existia no nosso imaginário — e a sua contrapartida: vivenciar a ausência do que povoava esse imaginário, no contexto da cidade “real”.

Creio que o sentimento de desorientação inicial que toma conta de todo viajante disposto a experimentá-lo, quando ele chega em uma cidade desconhecida, decorre dessa defasagem, como se sobrepuséssemos dois mapas da mesma cidade que não coincidem nunca. Rapidamente esse tipo de viajante vai aceitar e receber a ausência da cidade imaginada como uma dádiva, e então dessa ausência, disso que “não está lá”, que “não é”, instala-se a vertigem que acompanha todos os seus primeiros movimentos — e aqui a palavra movimento deve ser entendida em um sentido bastante amplo: são os gestos, os passos, mas também o gaguejo na nova língua, as hesitações, os tropeços e o fascínio diante de uma grafia que atrai o olho para combinações inusitadas de letras que, já descoradas pelo uso sempre igual e cotidiano, agora se revelam frescas, revitalizadas pelo novo arranjo. Este é um momento único da viagem, quem sabe o mais importante. Jamais essa vertigem se repetirá, pelo menos não ali naquela cidade e com aquele viajante.

Penso essas coisas, claro, a propósito de Istambul.

Cheguei aqui há quatro dias e sinto já saudades desses quatro dias. Nada se compara ao sentimento de perder-se em suas ruas, ruelas e mesmo nas artérias mais importantes. Sair, nos primeiros dias, logo nos primeiros instantes, caminhar o máximo possível, entrar na cidade sob o efeito da vertigem inicial, deixar-se absorver por ela — é o que de melhor pode ser feito quando se chega numa cidade.

Porque é ainda o momento em que “sair a esmo” não é uma opção, não faz parte de uma estratégia, e não importa qual a direção que você pegue você estará sempre indo “a esmo” . Nesse momento a decisão de dobrar nessa ou naquela esquina, à esquerda ou à direita, esvazia-se do peso de fazer parte de um caminho que leva a um determinado objetivo e ela, a decisão, se restringirá a sua essência, revelando o instinto do viajante, a atração que vai exercer sobre ele uma fachada, uma janela, a inclinação de uma rua, a sombra por trás de uma cortina, uma parede descascada. Nessa sucessão de apelos, sobretudo visuais, que a cidade vai lançando e o viajante aceitando ou rejeitando é que ela, a cidade, vai revelar-se a cidade daquele viajante, que não tem nada a ver com a cidade de um outro que decidiu, digamos, dobrar naquela e não nessa esquina, e que tem muito menos a ver, é evidente, com a cidade pasteurizada pelos guias de viagem.

Quando a cidade em questão é Istambul, então tudo isso ganha uma dimensão muito maior.

Cidade mítica, descrita e pintada através de inúmeros relatos que a insaciável sede de orientalismo do ocidente se encarregou de produzir, ela própria híbrida, com uma perna em cada continente, em cada cultura, alimentando-se e sofrendo com a tensão constante desse encontro entre oriente e ocidente. Cidade que é farta em referências no imaginário de qualquer um, nem que seja pela indefectível silhueta chapada de suas colinas e mesquitas majestosas, cujas cúpulas e minaretes recortam o céu do Bósforo. Cidade labiríntica — sei que labirinto é uma palavra batida, mas pelo menos agora não encontro outra melhor para nomear o que se encontra quando se deixa deslizar de uma de suas vias principais para se enfiar em uma entre tantas ruelas que sobem e descem, seguindo curvas que derivam em outras ainda mais estreitas e mais curvas, espremidas entre uma fila de prédios escuros e mal cuidados, de onde pendem lençóis e toalhas e todo o tipo de roupa em varais que passam de um a outro lado da rua, e chegando em uma escada de pedra ou num beco onde meninos jogam futebol, e seguindo, seguindo sempre, emendando ruas, que se multiplicam a cada bifurcação.

Evidentemente se estabelece um jogo durante esse trajeto vertiginoso, e como em todo jogo, algumas regras devem ser seguidas. Uma delas é a de nunca tentar voltar sobre os próprios passos, ou seja, andar sempre para frente ou para os lados; e uma outra, talvez a mais importante, é esquecer qualquer tipo de referência, seja ela prévia, preconcebida pelos guias e relatos de viagem, seja a referência ou referências que vão se instalando durante o próprio trajeto.

Sim, porque depois de alguns dias a vertigem passa.

E você começa aos poucos a se orientar na cidade. Não é uma questão puramente espacial, mas é um adaptação aos sons, à língua que você continua sem compreender mas que já soa de forma diferente, é também uma adaptação às pessoas que você vê, aos rostos, adaptação aos cheiros, às cores, a um determinado tipo de arquitetura.

Há uma espécie de aclimatação, como se seu corpo se ajustasse a novas condições de temperatura e pressão. Seu coração agora tem um batimento ligeiramente diferente do que tinha quando você chegou. Você continua um tanto perdido, você continua, obviamente, a ser um estrangeiro na cidade, mas alguma coisa ali já lhe é familiar. Você ouve nomes como Cihangir, Beşiktaş, Karaköy, Fatih, Eyüp, Nişantaşi, Eminönü, Üsküdar, Beyoğlu, Fener, Şişli, todos eles nomes de bairros, e eles já não apontam unicamente para a fantasia que a palavra, só ela, produzia; agora cada um desses nomes representa mais alguma coisa, já têm um lugar no mapa da cidade que você vai compondo na cabeça, já têm uma cara, um tamanho, você já percorreu e refez aquela ortografia, já compôs outras referências que agora se sobrepõem àquelas que eram fruto da mera fantasia lingüística, apagando-as para sempre.

Como para sempre a cidade, a sua cidade estará fixada. Claro que ela vai se expandir, vai revelar novos bairros, novas caras, e mais tarde ainda vai sofrer o trabalho da memória, a deturpação do relato, e se transformar ainda mais. Mas a base para essa transformação está assentada. E tudo se resolveu ali, quando você pôs o pé na rua pela primeira vez e decidiu sair para um lado e não para o outro.